O Echo

Tão tarde. Adão não vem? Aonde iria Adão?!
Talvez que fosse á caça; quer fazer surprezas com alguma côrça branca lá da floresta.
Era p'lo entardecer, e Eva já sentia cuidados por tantas demoras.
Foi chamar ao cimo dos rochedos, e uma voz de mulher tambem, tambem chamou Adão.
Teve mêdo: Mas julgando fantazia chamou de nôvo: Adão? E uma voz de mulher tambem, tambem chamou Adão.
Foi-se triste para a tenda.
Adão já tinha vindo e trouxera as settas todas, e a cáça era nenhuma!
E elle a saudá-la ameaçou-lhe um beijo e ella fugiu-lhe.
- Outra que não Ella chamára tambem por Elle.

A Sésta

Pierrot escondido por entre o amarello dos gyrassois espreita em cautela o somno d'ella dormindo na sombra da tangerineira. E ella não dorme, espreita tambem de olhos descidos, mentindo o sôno, as vestes brancas do Pierrot gatinhando silencios por entre o amarelo dos gyrassois. E porque Elle se vem chegando perto, Ella mente ainda mais o sôno a mal-resonar.

Junto d'Ella, não teve mão em si e foi descer-lhe um beijo mudo na negra meia aberta arejando o pé pequenino. Depois os joelhos redondos e lizos, e já se debruçava por sobre os joelhos, a beijar-lhe o ventre descomposto, quando Ella acordou cançada de tanto sôno fingir.

E Elle ameaça fugida, e Ella furta-lhe a fuga nos braços nús estendidos.

E Ella, magoada dos remorsos de Pierrot, acaricia-lhe a fronte num grande perdão. E, feitas as pazes, ficou combinado que Ella dormisse outra vez.

Ruinas

Pandeiros rôtos e côxas táças de crystal aos pés da muralha.

Heras como Romeus, Julietas as ameias. E o vento toca, em bandolins distantes, surdinas finas de princezas mortas.

Poeiras adormecidas, netas fidalgas de minuetes de mãos esguias e de cabelleiras embranquecidas.

Aquellas ameias cingiram uma noite peccados sem fim; e ainda guardam os segredos dos mudos beijos de muitas noites. E a lua velhinha todas as noites réza a chorar: Era uma vez em tempo antigo um castello de nobres naquelle lugar... E a lua, a contar, pára um instante - tem mêdo do frio dos subterraneos.

Ouvem-se na sala que já nem existe, compassos de danças e rizinhos de sêdas.

Aquellas ruinas são o tumulo sagrado de um beijo adormecido - cartas lacradas com ligas azues de fechos de oiro e armas reais e lizes.

Pobres velhinhas da côr do luar, sem terço nem nada, e sempre a rezar...

Noites de insonia com as galés no mar e a alma nas galés.

Archeiros amordaçados na noite em que o côche era de volta ao palacio pela tapada d'El-rei. Grande caçada na floresta--galgos brancos e Amazonas negras. Cavalleiros vermêlhos e trombêtas de oiro no cimo dos outeiros em busca de dois que faltam.

Uma gondola, ao largo, e um pagem nas areias de lanterna erguida dizendo pela briza o aviso da noite.

O sapato d'Ella desatou-se nas areias, e fôram calça-lo nas furnas onde ninguem vê. Nas areias ficaram as pègadas de um par que se beija.

Noticias da guerra - choros lá dentro, e crépes no brazão. Ardem cirios, serpentinas. Ha mãos postas entre as flôres.

E a torre morêna canta, molenga, dôze vezes a mesma dôr.

Primavera

O sol vae esmolando os campos com bôdos de oiro.

A pastorinha aquecida vae de corrida a mendigar a sombra do chorão corcunda, poeta romantico que tem paixão p'la fonte.

Espreita os campos, e os campos despovoados dão-lhe licença para ficar núa. Que leves arrepios ao refrescar-se nas aguas! Depois foi de vez, meteu-se no tanque e foi espojar-se na relva, a seccar-se ao sol. Mas o vento que vinha de lá das Azenhas-do-Mar, trazia peccados
comsigo. Sentiu desejos de dar um beijo no filho do Senhor Morgado. E lembrou-se logo do beijo da horta no dia da feira. Fechou os olhos a cegar-se do mau pensamento, mas foi lembrar-se do
proprio Senhor Morgado á meia noite ao entrar na adega. Abanou a fronte para lhe fugir o peccado, mas foi dar comsigo na sachristia a deixar o Senhor Prior beijar-lhe a mão, e depois a testa... porque Deus é bom e perdôa tudo... e depois as faces e depois a bocca e depois... fugiu... Não devia ter fugido... E agora o moleiro, lá no arraial, bailando com ella e sem querer, coitado, foi ter ao moinho ainda a bailar com ella. E lembra-se ainda - sentada na grande arca,
e mãos alheias a desapertarem-lhe as ligas e o corpête, emquanto ouve a historia triste do moinho com cincoenta malfeitores... Quer lembrar-se mais, que seja peccado! quer mais recordações do moinho, mas não encontra mais.

Ah! e o boieiro quando, a guiar a junta, topou com ella e lhe perguntou se vira por acaso uma borboleta branca a voar a muito, uma borboleta muito bonita! Que não, que não tinha visto; mas o boieiro desconfiado foi procurando sempre, e até mesmo por debaixo dos vestidos.

Como desejava poder ir com todos!

Não sabe o que sente dentro de si que a importuna de bem estar.

Teria a borbolêta branca fugido para dentro d'ella?

Trevas

De dia não se via nada, mas p'la tardinha já se apercebia gente que vinha de punhaes na mão, devagar, silenciosamente, nascendo dos pinheiros e morrendo nelles. E os punhaes não brilhavam: eram luzes distantes, eram guias de lençoes de linho escorridos de hombros franzinos. E a briza que vinha dava gestos de azas vencidas aos lençoes de linho, azas brancas de garças caídas por faunos caçadores. E o vento segredava por entre os pinheiros os mêdos que nasciam.

E vinha vindo a Noite por entre os pinheiros, e vinha descalça com pés de surdina por môr do barulho, de braços estendidos p'ra não topar com os troncos; e vinha vindo a noite céguinha como a lanterna que lhe pendia da cinta. E vinha a sonhar. As sombras ao vê-la esconderam os punhaes nos peitos vazios.

A lua é uma laranja d'oiro num prato azul do Egypto com perolas desirmanadas. E as silhuetas negras dos pinheiros embaloiçados na briza eram um bailado de estatuas de sonho em vitraes azues. Mãos ladras de sombra leváram a laranja, e o prato enlutou-se.

Por entre os pinheiros esgalgados, por entre os pinheiros entristecidos, havia gemidos da briza dos tumulos, havia surdinas de gritos distantes - e distantes os ouviam os pinheiros esgalgados, os pinheiros gigantes.

A briza fez-se gritos de pavões perseguidos. E as sombras em danças macabras fugiam fumo dos pinheiraes p'lo meu respirar.

Escondidas todas por detraz de todos os pinheiros, chocam-se nos ares os punhaes acêsos. Faz-se a fogueira e as bruxas em roda rezam a gritar ladainhas da Morte. Veem mais bruxas, trazem alfanges e um caixão. Doem-me os cabellos, fecham-se-me os olhos e quatro anjos levam-me a alma... Mas a cigarra em algazarra de alêm do monte vem dizer-me que tudo dorme em silencio na escuridão.

Veiu a manha e foi como de dia: não se via nada.

Canção

A pastorinha morreu, todos estão a chorar. Ninguem a conhecia e todos estão a chorar.


A pastorinha morreu, morreu de seus amôres. Á beira do rio nasceu uma arvore e os braços da arvore abriram-se em cruz.


As suas mãos compridas já não acenam de alêm. Morreu a pastorinha e levou as mãos compridas.


Os seus olhos a rirem já não troçam de ninguem. Morreu a pastorinha e os seus olhos a rirem.


Morreu a pastorinha, está sem guia o rebanho. E o rebanho sem guia é o enterro da pastorinha.


Onde estão os seus amôres? Ha prendas para Lhe dar. Ninguem sabe se é Elle e ha prendas para Lhe dar.


Na outra margem do rio deu á praia uma santa que vinha das bandas do mar. Vestida de pastora p'ra se não fazer notar. De dia era uma santa, à noite era o luar.


A pastorinha em vida era uma linda pastorinha; a pastorinha mórta é a Senhora dos Milagres.

A Taça de Chá

O luar desmaiava mais ainda uma máscara caida nas esteiras bordadas. E os bambús ao vento e os crysanthemos nos jardins e as garças no tanque, gemiam com elle a advinharem-lhe o fim. Em róda tombávam-se adormecidos os idolos coloridos e os dragões alados. E a gueisha, procelana transparente como a casca de um ovo da Ibis, enrodilhou-se num labyrinto que nem os dragões dos deuses em dias de lagrymas. E os seus olhos rasgados, perolas de Nankim a desmaiar-se em agua, confundiam-se scintillantes no luzidio das procelanas.

Elle, num gesto ultimo, fechou-lhe os labios co'as pontas dos dedos, e disse a finar-se:--Chorar não é remedio; só te peço que não me atraiçoes emquanto o meu corpo fôr quente. Deitou a cabeça nas esteiras e ficou. E Ella, num grito de garça, ergueu alto os braços a pedir o Ceu para Elle, e a saltitar foi pelos jardíns a sacudir as mãos, que todos os que passavam olharam para Ella.

Pela manhã vinham os visinhos em bicos dos pés espreitar por entre os bambús, e todos viram acocorada a gueisha abanando o morto com um leque de marfim.

A estampa do pires é igual.

Rondel do Alentejo

Em minarete
mate
bate
leve
verde neve
minuete
de luar.


Meia-noite
do Segredo
no penedo
duma noite
de luar.


Olhos caros
de Morgada
enfeitada
com preparos
de luar.


Rompem fogo
pandeiretas
morenitas,
bailam tetas
e bonitas,
bailam chitas
e jaquetas,
são as fitas
desafogo
de luar.


Voa o xaile
andorinha
pelo baile,
e a vida
doentinha
e a ermida
ao luar.


Laçarote
escarlate
de cocote
alegria
de Maria
la-ri-rate
em filia
de luar.


Giram pés
giram passos
girassóis
e os bonés,
e os braços
destes dois
giram laços
ao luar.


O colete
desta Virgem
endoidece
como o S
do foguete
em vertigem
de luar.


Em minarete
mate
bate
leve
verde neve
minuete
de luar.

A Noite Rimada

Pela serra ao luar
ia um menino sozinho
sem sono pra se deitar.


Ia o menino a pensar
porque seria ele só
sem sono pra se deitar.


Ia o menino a pensar
que há tanto por pensar
e a cidade a descansar.


Ia o menino a pensar
porque seria ele só
sem sono pra se deitar.


Quem dorme sem ter pensado
deve ter sono emprestado
não é sono bem ganhado.


Ia o menino a pensar
como poder arranjar
muita força pra pensar.


Ia o menino a arranjar
muita força pra pensar
o próprio sonho ganhar

A Flor

"Je travaille tant que je peux et le mieux que je peux, toute la journée. Je donne toute ma mesure, tous mes moyens. Et après, si ce que j'ai fait n'est pas bon, je n'en suis plus responsable; c'est que je ne peux vraiment pas faire mieux".
Henri Matisse


Pede-se a uma criança: Desenhe uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém.


Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa direcção , outras noutras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase que não resistiu.


Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era de mais.


Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: uma flor!


As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor!


Contudo, a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor!

Mãe Vem Ouvir

Mãe!


Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei! Traze tinta encarnada para escrever estas coisas! Tinta cor de sangue, sangue verdadeiro, encarnado!


Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!


Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens! Eu vou viajar. Tenho sede! Eu prometo saber viajar.


Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um. Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me ao teu lado. Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei, tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.


Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado! Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa. Eu também quero Ter um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.


Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!


Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!